O luxo trabalha, tradicionalmente, com a noção de exclusividade — expressão que torna evidente a diferenciação estabelecida entre o indivíduo e o outro. Na moda, essa ideia é construída pelos códigos impressos nas peças: da arte aplicada ao design, passando pelas técnicas desenvolvidas para a criação de um item de valor único, ao tecido da própria marca — mas não deveria parar por aí. Pesquisas de mercado de grandes analistas do setor de luxo endossam que as grifes precisam investir na transparência da cadeia, a fim de atrair e reter as gerações Y (Millennials) e Z. Para servir a esse propósito, blockchains podem coletar e armazenar os dados que serão a fonte de informação sobre toda a história do produto.
A tecnologia seria uma das soluções para a crise no luxo, que vem afetando com mais intensidade as casas de moda. A mudança constante de direção criativa não resolveria o problema — apenas traria mais incertezas e desconfiança. Chanel, Versace, Gucci, Bottega Veneta, Maison Margiela, Jil Sander, Carven, Balenciaga, Alexander McQueen, Mugler, Jean Paul Gaultier, Dior, Marni: todas anunciaram novos designers, responsáveis pelas criações, que começaram a debutar nas temporadas primavera-verão 2026 masculina e alta-costura outono-inverno 2025. Trocas essas que aconteceram quando informes já davam conta dos desafios para o luxo; o banco HSBC estima que 2024 foi o sexto pior ano para o setor, considerando as duas últimas décadas.
Um convite à moda circular
A Bain & Company e a Fundação Altagamma corroboram esse cenário. Somente um terço das empresas cresceu no ano passado. Por outro lado, os itens pre-loved tiveram aumento de 7% em vendas no câmbio atual; estima-se que totalize 48 bilhões de euros, ou 310 bilhões de reais. Para que essa quantia seja direcionada para a grife de origem, canais próprios de revenda e monitoramento se tornaram o melhor investimento. Instituições brasileiras já perceberam o movimento como uma grande oportunidade para aproximar o público, perenizar peças e prezar pelo consumo consciente.
Dentre as casas de moda que acompanham as previsões para o futuro do setor, a NK Store lançou no início do mês de junho deste ano os projetos de reparo (nk timeless) e recommerce (nk archive). Enquanto o primeiro oferece serviços de conserto e ajuste, o segundo disponibiliza um portal parceiro para revenda de produtos da marca. Neste caso, os anunciantes são os próprios clientes, que escolhem entre receber uma porcentagem do valor em conta ou em crédito na loja. A iniciativa serve, de fato, à circularidade da moda e, sobretudo, à herança do luxo — que se relaciona com branding e percepção de valor; tem a ver com a perspectiva que se quer contar e colocar no mundo.
A importância de um bom enredo
O storytelling vai reforçar a tradição e deve se adiantar às crises. Particularmente quando os processos de criação forem comunicados. Um caso recente, de abril, expôs a sensibilidade de grandes casas a questões sobre autenticidade e transparência da cadeia. Logo após o governo Trump anunciar uma série de tarifas a importados, fabricantes chineses publicaram vídeos no TikTok reivindicando a produção de itens inteiros de luxo (com exceção de logos), não apenas componentes deles. Se a empresa, entretanto, comunica todas as técnicas — artesanais — dela, cresce a confiança de que um bem exclusivo vai ser adquirido. Acontece um controle da narrativa.
Existe um interesse pelos bastidores. O relatório Future of Luxury (Backslash, 180 Luxe e TBWA\CULT) classifica a Glass Factory, iniciativa global que investiga a manufatura nas fábricas, como uma educadora do setor. Nas mídias sociais, os vídeos acumulam 100 milhões de visualizações, somando os números das plataformas TikTok, Instagram e Youtube. Nesta última, também ultrapassa a marca de 1 milhão de visualizações a entrevista da Vogue com Priscila Alexandre Spring, na qual foi mostrada pela primeira vez a produção artesanal da Birkin (e de outras bolsas). Publicado no começo de 2024, o perfil da diretora criativa de artigos de couro da Hermès anteviu a polêmica do ano seguinte provocada pela guerra tarifária.
Apenas um chip ou uma chave de acesso para o processo criativo?
Os casos demonstram mais do que uma resposta a estratégias de marketing e comunicação; sugerem que o acesso à informação não precisa vir apenas por meio da notícia e da viralização: pode estar na etiqueta. QR codes e Near Field Communication (NFC) chips incorporados à peça, que quando escaneados, dão acesso à sua produção. Todo produto têxtil, por sinal, deverá ter um Digital Product Passport (DPP) até 2030 na Europa. Mas os dados em blockchain, um sistema de registro digital não centralizado e transparente, não configuram somente rastreabilidade. Os Non-Fungible Tokens (NFTs), além de ativos únicos que podem representar uma versão no metaverso de um artigo físico de moda de luxo, também inserem consumidores em experiências virtuais exclusivas.
Há desafios na implementação dessas práticas associadas à inovação. No caso dos NFTs, um estudo da Escola de Administração de Empresas da Universidade Bar-Ilan em Israel e da Escola de Negócios e Direito da Universidade de Agder na Noruega alerta para a possibilidade de queda da percepção de valor de peças físicas com um digital twin. Ao investir em blockchain, companhias brasileiras precisam estar atentas à Lei Geral De Proteção de Dados Pessoais (LGPD) a fim de preservar informações pessoais dos clientes em lugares que, por exemplo, verificam autenticidade para revenda.
Os custos de desenvolvimento e ativação de iniciativas que promovem transparência e sustentabilidade são outro fator, e cabe ao marketing a tarefa de garantir o fortalecimento da empresa e seus valores, bem como comunicar o melhor uso das tags após qualquer aquisição.
Essa nova tecnologia nos permitirá conhecer a peça mais profundamente, descobrir como ela foi criada e por quais processos passou até estar em nossos corpos. O que antes era apenas um pedaço de tecido, agora se tornou um elemento de uma narrativa conjunta, unindo nossas vivências com o histórico de produção da peça.