Em setembro deste ano, fashionistas brasileiros já aguardavam o retorno triunfal de uma das revistas de moda mais importantes do mundo. Além de um site com edições digitais e um podcast, Elle Brasil estreia no formato premium trimestral com capas estreladas por Djamila Ribeiro, Gilberto Gil, Iza e a rapper indígena Katú Mirim.
A volta do título surpreendeu o público por sua transformação que marcou a história da imprensa e da moda brasileira, além de uma legião de leitores em seus mais de trinta anos de publicação. Para entender mais essa evolução e a volta de Elle Brasil no formato impresso, resgatamos parte da história das revistas no Brasil para mostrar que jornalismo de moda é sério, resistente e compromissado.
As quatro versões de capa estampam Djamila Ribeiro, Gilberto Gil, Iza e a rapper indígena Katú Mirim. Com conteúdo premium de textos e imagens de tirar o fôlego, a edição sem chamadas na capa se assemelha a um livro pela consistência e relevância das matérias, editoriais e entrevistas que traduzem a essência de Elle Brasil | Foto: Reprodução/Elle Brasil.
Páginas de história
É fato que revistas enchiam olhos e prateleiras de bancas de jornal. O fascínio pelo papel e pela imagem conquistou um mercado editorial que fez história (e notícia) em muitas redações na era Pré-internet. No universo da moda, o jornalismo no Brasil assistiu ao apogeu de grandes títulos impressos. Manequim, em 1959, e Cláudia, no início da década de 1960, foram revistas que nasceram para as necessidades da mulher que consumia roupa sob medida e reconhecia seus direitos sociais em pautas polêmicas para a época, como o divórcio e o uso de anticoncepcional. Com a chegada da Vogue, em 1975, pela Carta Editorial, temas essencialmente ligados à moda conquistaram ainda mais leitores.
Quando a imprensa feminina começa a tomar forma pelos investimentos em mídia no país, a Editora Abril se lança no mercado de impressos e formará um dos maiores parques gráficos da América Latina. Sob o olhar visionário de Victor Civita e parceiros, a editora trouxe títulos internacionais para desbravar públicos novos e consolidar a cultura de revistas no jornalismo brasileiro.
Prazer, Elle Brasil
De origem francesa, Elle nasceu na recuperação econômica da Europa no pós-guerra de 1945. A jornalista Hélène Gordon-Lazareff teve a ideia de criar uma revista feminina que discutisse valores políticos libertários da mulher naquele contexto de crise. O voto feminino conquistado na França coincide com o lançamento da revista, o que já tinha acontecido nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Em 1988, Elle desembarca no Brasil pela Editora Abril. Poucos meses antes de promulgação da Constituição, o clima era esperançoso a uma publicação que defendesse moda como força política e libertadora em que conquistas e direitos sempre foram parte do DNA da revista.
Com mais de 30 anos, o título foi descontinuado devido às transformações do fazer notícia nos últimos anos. Com a ascensão da internet, as práticas do jornalismo foram reinventadas para conseguir e manter audiência. O digital cresceu e abalou estruturas do impresso. Em 6 de agosto de 2018, uma reunião com colaboradores anunciou o triste fim de Elle Brasil e outros dez títulos da Abril.
Hoje, o letreiro verde em neon com o símbolo da editora na região de Pinheiros, em São Paulo, marca um edifício pálido de pintura descascada. Com boa parte dos andares desocupados pela redução drástica das equipes, o prédio já foi lugar de grandes decisões para muitas páginas do jornalismo brasileiro.
Papel Premium
Elle Brasil voltou com força em um site de conteúdo exclusivo para assinantes, um podcast sobre as principais notícias semanais de moda e uma versão impressa trimestral pelo grupo Papaki. Em formato premium, maior, e com acabamento de luxo, o lançamento aconteceu em outubro com quatro versões de capa estreladas por Djamila Ribeiro, Gilberto Gil, Iza e a rapper indígena Katú Mirim. A publicação vai de conteúdos mais leves e soltos na página sobre novas marcas de acessórios, exposições e trabalhos de artistas recém descobertos até textos mais densos, entrevistas e editoriais com imagens performáticas em enquadramentos inusitados.
A beleza do diálogo, de Pedro Camargo e Do outro lado do espelho, de Luigi Torre exaltam a forma como a revista olha a moda pelo prisma da diversidade, enfatizando a variedade de rostos e corpos. Em se tratando de estreia, o primeiro texto resgata capas premiadas, como a reconstrução de obras famosas, como Mona Lisa por Sônia Braga e A Vênus de Botticelli por Lea T., em 2017. O pioneirismo em tratar sobre padrões de corpos com a influencer Juliana Romano e a capa espelhada de maio de 2015 que alavancou a hashtag #VocênaCapa nas redes sociais foram as principais lembranças. Luigi Torre aborda as transformações que a pandemia causou na moda. Ativa no contexto digital, a revista recolheu depoimentos em seu grupo do Facebook sobre a validade das tendências nesse período. Tratando de temas emergentes, os textos de viés crítico reforçam a linha editorial da revista.
A colunista Vivian Whiteman, ex-diretora de reportagem e, hoje, editora especial, traz reflexões para o conceito de brasilidade ao discutir a situação do país. Amarra teu arado a uma estrela, verso de uma canção de Gilberto Gil, intitula um desabafo sobre os desafetos, os preconceitos e a dificuldade que o setor cultural enfrenta no Brasil. Tema mais do que pertinente em um momento tão delicado de crise política e sanitária que o país enfrenta.
Imagem e palavra
Editoriais inspirados em ícones da cultura brasileira são destaques pelas imagens fortes e criativas. Em Cine Mambembe, filmes brasileiros consagrados são inspirações para cenas marcantes. Terra em transe, de Glauber Rocha, Bacurau, de Juliano Dornelles e Amarelo Manga, de Cláudio Assis são alguns que nos enchem os olhos com produções, poses e expressões. A sensibilidade feminina de Clarice Lispector inspirou uma beleza leve em Que mistério tem Clarice? em que trechos de obras se misturavam às imagens. Sobre amor e diáspora retrata o universo do artista visual Dalton Paula na construção de imagens de tom surrealista com inspiração nas raízes africanas. Em se tratando de beleza, modelos mais maduras estrelam Traço livre, um editorial de beleza com penteados de inspiração artsy. Em enquadramentos de olhos e piscadas, cores, volumes e texturas preenchem páginas e registram a atmosfera onírica e fashion tão característica de Elle Brasil.
As entrevistas com os personagens de capa abrem a editoria Cultura & Lifestyle com cliques de Bob Wolfenson. Sílvia Rogar, ex-diretora de redação da Vogue Brasil, Bruna Bittencourt, Isabela Reis e Marina Santa Clara encararam questões que vão além do trabalho dos entrevistados. Desde as realizações poéticas de Gilberto Gil e sua relação profunda com a historia da música brasileira, os desafios impostos pelo preconceito e as trajetórias de sucesso de Iza e Djamila Ribeiro, até o reconhecimento da cultura e da etnia indígena preenchem a seção com consistência no tratamento de temas emergentes como racismo, machismo e exclusão social.
Futuro
Resgatando a nostalgia das revistas impressas, o título estrangeiro incorporou a brasilidade ao fazer jornalismo de moda. Diversidade, ideologia de gênero e empoderamento feminino sustentam a linha editorial de Elle Brasil que, neste novo contexto, se torna uma plataforma de conteúdo. Não à toa, suas edições digitais – como a Elle View – não se reduzem a looks, influencers e estratégias digitais de sucesso.
Pelas lentes de Elle, título da carta da editora Suzana Barbosa, moda é olhar além do óbvio, desvestindo preconceitos por meio da arte e da cultura em que vivemos. De todo o prazer tátil de folhear uma revista muito parecida com um livro pela durabilidade de conteúdos, embalados por uma capa sem chamadas instantâneas, a leitura é fluída, coerente e prazerosa pela consistência, relevância e apuração dos textos.
O intervalo de dois anos, desde o (quase) fechamento da Abril, fortaleceu e expandiu um jornalismo de moda sério, resistente e capaz de reavivar o que a moda sempre fez de melhor: olhar o presente de forma crítica na construção de um futuro mais consciente. De tudo o que ainda pode ser feito na publicação, ainda há muito o que dizer neste novo formato. O fim foi um (re)começo.