Se você vive no Brasil e acompanha o noticiário e as redes sociais, escutou durante toda a quarta-feira, 9/6, o nome de Kathlen Romeu, 24 anos, grávida, e morta numa ação policial em Lins de Vasconcelos, Rio de Janeiro, na terça-feira, 8/6. Não vou me apegar à carnificina da história porque tenho colegas em centenas de redações fazendo isso. Hoje quero conversar sobre a desumanização secular da vida preta que ganhou um capítulo ainda mais revoltante.
Foto: Rolande | Unplash
Depois dessa introdução e antes de todo o resto, sou Viviane Rocha, mineira, 36 anos, preta, pobre, periférica, jornalista há quase 13 anos e consultora de imagem e estilo. Uma mulher exausta de assistir e fugir do genocídio do povo preto e do sequestro da nossa subjetividade.
Ainda anestesiada de sono e furiosa com mais uma ação desastrosa de alguns operadores da linha de frente da segurança pública, que preciso lembrar, também são pretos e pobres na maioria das vezes, fui acompanhar a repercussão do caso na mídia. Descobri que a design de interiores Kathlen, lindíssima, era funcionária de uma famosa e seleta grife carioca na manhã da quarta-feira, dia seguinte ao ocorrido.
Ingênua, fui ao Instagram da marca e pensei que seria apenas uma nota de pesar protocolar e me deparei com a hashtag #JustiçaPorKathlen numa tela preta, mas o horror estava na legenda. A arte foi usada para promover um cupom de desconto no código da falecida vendedora enfatizando que a comissão das vendas seria destinada para sua família. Foi um espetáculo comercial com a morte de uma jovem que teve a vida interrompida pelo racismo institucional do Estado. Famílias pretas não podem nem viver o luto sem sofrer várias outras agressões em seguida!
Após horas em silêncio e de uma enxurrada de críticas, os administradores da página editaram a legenda, fizeram um pedido de desculpas e desativaram o cupom. Tudo frio e desumanizado. Ficou por conta de Carolina Sodré, mulher preta, historiadora e especialista de diversidade que trabalha na empresa, a missão de apagar esse incêndio publicamente.
Carolina, não sei o que aconteceu nos bastidores até essa decisão ser tomada. Quero acreditar profundamente que, enquanto uma profissional preta que ocupa posição de destaque numa grande marca de moda, você tenha lutado contra esse posicionamento. Vi que você se colocou como parte do erro e tem segurado o rojão. Mas não desculpo os profissionais (tenho quase certeza que brancos e alheios à nossa luta) que aprovaram essa aberração, que possam ter ignorado suas colocações ou talvez nem te consultaram. Creio que você está muito chateada com tudo o que está acontecendo. Quando um ou uma de nós é arrancada da vida, morremos um pouco junto também. É assim que me sinto toda vez que um dos nossos se vai dessa forma nefasta.
Foto: Mika Baumeisyer | Unplash
Lutamos pelo direito à vida plena, condição que nos foi arrancada pela escravidão e suas sequelas sociais. Séculos se passaram e as pessoas pretas continuam sendo vistas como corpos para a exploração laboral, para a recreação sexual, para a violência gratuita e encarceramento em massa num sistema punitivista e viciado em nos criminalizar.
Vender roupas e recolher a comissão minúscula da funcionária grávida assassinada pelo Estado para fazer caridade pública é imoral e insensível. A sociedade brasileira perdeu, a família perdeu e Kathlen perdeu duas vidas.
Contudo, o capitalismo nunca perde. Desde o ano passado a luta antirracista virou mercadoria e se juntou à mercantilização de nossa estética e corpos. Quando mulheres e homens pretos falavam da transição capilar mais de uma década atrás, as empresas abraçaram o movimento em busca de lucratividade. O mesmo aconteceu com as companhias de maquiagem. A condição de mercadoria é perene e a de consumidor para nós é condicional. Nessas empresas somos a mão de obra barata e na maioria das vezes quem não consome o que produz. Muitos de nós temos formação e competência para ocupar cargos em grandes empresas para que erros como esse não aconteçam. No entanto, o sistema não deseja que cheguemos lá.
Temos sentimentos, dores, vontades, afetos e sonhos. Kathlen estava amando, ganhando espaços nas redes sociais, queria ser modelo, estava economicamente ativa e seria mãe em breve. Um tiro apagou a vida de uma jovem e impôs um sentimento de luto e revolta numa família. O mesmo aconteceu dias atrás em Salvador, Bahia, onde em outra ação policial as vidas de Viviana Soares, 40 anos, e Maria Célia de Santana, 73 anos, foram interrompidas.
Somos secularmente mercantilizados a preço de banana para enriquecer uma estrutura que só beneficia financeiramente a branquitude. E a forma como a morte de Kathleen foi tratada por seus empregadores nos diz muito sobre como essa lógica é camaleônica e perversa.
Espero que a Farm assuma verdadeiramente outra postura porque fazer justiça por Kathlen é lutar contra esse sistema que se alimenta dessas tragédias. Ser antirracista é promover diversidade em seu corpo de funcionários, se dispor a conhecer e estudar uma sociedade forjada pelo racismo e desenvolver, ao lado daqueles que são marginalizados, os mecanismos para modificar a realidade.
Meus sentimentos à família de Kathlen, em especial, à mãe, Jaqueline, e a avó, Sayonara. Também estendo minha solidariedade às famílias de Viviana, Maria Célia e de todas as pretas, pretos e pretxs que são privados da vida plena nesse país.