O que será da moda após o Covid? Para a Vogue Brasil de maio, a consultora Costanza Pascolato escreveu que a indústria “está, neste instante pandêmico, em ponto morto. Apesar das muitas previsões, ninguém sabe ao certo onde é que vai dar”. E são, verdadeiramente, muitas previsões. A empresária Alice Ferraz, do Fhits, por exemplo, apostou em sua coluna semanal para o Estado de S. Paulo, do dia 5 de abril, que a “ostentação óbvia (…) está fadada ao fracasso. Serão tempos com mais sobriedade”.
É uma reflexão popular, mas ainda assim corajosa. Historicamente, a forma com que a moda reagiu a tempos de crise é ambígua e esse é o primeiro momento real de caos e incerteza generalizados do século XXI, o que torna essa discussão ainda mais complicada. A verdade é que não há uma resposta – pelo menos por enquanto -. O que se pode fazer é revisitar o passado para perceber como outras pandemias afetaram o universo da moda e da indumentária e, quem sabe, ter um tímido vislumbre do futuro.
Duas mulheres usam máscaras durante Gripe Espanhola, em 1918. Fonte: Keystone/Hulton Archive
Peste Negra
Para começar, é possível que o próprio desejo por roupas bonitas tenha aberto caminho para a primeira grande epidemia ocidental: a Peste Negra. Muito antes das Navegações – que tiveram início no fim do século XV –, a nobreza europeia já delirava com o brilho e a suavidade de um certo tecido do império chinês. Para facilitar a sua entrada no Ocidente, foram criadas, no século 2 a.C, as Rotas da Seda. As explorações marítimas, mais de um milênio depois, tornariam essas longas estradas obsoletas, mas não antes de impedirem que os primeiros casos da peste bubônica chegassem na Europa através delas.
Entre 1348 e 1350, mais de um terço da população europeia foi dizimado pela doença, o que resultou em um surpreendente processo de prosperidade. De repente – e tragicamente – havia menos bocas para serem alimentadas, mas um número maior de terras disponíveis para o cultivo, o que garantia a comercialização do excedente das plantações. Muitos nobres herdaram as fortunas de seus familiares falecidos e viram nesse momento a necessidade de ostentar suas novas riquezas.
Nesse período, a moda tornou-se extravagante e passava regularmente por mudanças, já que os nobres agora competiam pelos guarda-roupas mais luxuosos com uma nova classe social: a burguesia. Esse conflito percorreria os séculos seguintes até encontrar seu ápice em Versalhes, na corte francesa de Luís XIV, que elevou o ato de se vestir a novos patamares. E seria a morte de seu bisneto, o rei Luís XV, em 1774, que colocaria a moda no centro das questões de saúde.
Varíola
Na década anterior, uma epidemia de varíola em Paris causou a morte de milhares de cidadãos e grande parte dos médicos franceses apontou como causa as tentativas de inoculação do vírus – o que já era muito comum no Oriente e no restante da Europa. Foi apenas com a morte de Luís XV, aos 64 anos, em decorrência da varíola, que a corte percebeu a necessidade da inoculação. Seus netos, Luís XVI e os dois irmãos aceitaram passar pelo processo.
O sucesso das inoculações da família real francesa deu origem a um penteado chamado pouf à l’inoculation, uma variação do pouf (penteado popularizado pela esposa de Luís XVI, Maria Antonieta) que ajudou a colocar a opinião pública a favor da prevenção. Os penteados traziam uma serpente, simbolizando Esculápio, o deus grego da medicina, um naipe de paus, representando a Conquista, um sol, em homenagem ao rei, e um ramo de oliveira, para celebrar a vitória do homem sobre a doença. A moda do pouf não durou muito, pois com a Revolução Francesa, em 1789, ele foi considerado um dos grandes símbolos do Antigo Regime e, por isso, foi abolido.
Gripe Espanhola
Mais de um século depois, outra pandemia teria um enorme impacto na sociedade: a Gripe Espanhola. Entre 1918 e 1919, dezenas de milhões de pessoas foram vítimas dessa doença. É difícil pontuar com exatidão os impactos da Gripe Espanhola na moda, pois ela aconteceu quase ao mesmo tempo em que Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e as consequências de ambas se confundem. Ainda assim, esses anos observaram grandes mudanças no guarda-roupa feminino.
Com exceção de algumas poucas profissões, as mulheres ocuparam nesse período a maior parte dos cargos realizados anteriormente por homens, que agora serviam nos exércitos. A calça, em especial, foi um artigo de roupa que se popularizou entre as mulheres na época: “Vestir-se com extravagância em tempo de guerra não é apenas inconveniente. É impatriótico”, dizia um cartaz londrino. Na década seguinte, as roupas tornaram-se mais leves e sóbrias, e moda foi liderada por nomes como Madeleine Vionnet e Coco Chanel.
Corona na atualidade
Cem anos desde então, a humanidade enfrenta mais uma vez tempos de pandemia e, com tantas mudanças que ocorreram nesse intervalo, é difícil prever com exatidão o rumo que a moda tomará no futuro próximo. Talvez seja um caminho de extremos, como foi a extravagância que sucedeu a Peste Negra ou a simplicidade e leveza do pós-Gripe Espanhola. É mais possível, porém, que esse período de confinamento promova profundas autorreflexões e revele, ao fim da quarentena, uma pluralidade genuína nas formas de se perceber e se utilizar a moda. Isso sim seria algo inédito no século XXI.