VOCÊ ESTÁ LENDO >> As questões políticas e feministas por trás da História da Moda
POR Júlia Vilaça | 17 de abril

Como as mulheres utilizaram seus trajes para demarcar seus espaços e provar que se vestir é um ato político.

Para muitos a moda é algo exclusivamente frívolo e efêmero. Para outros, é um ato de resistência.  Através da história conseguimos ver que não é de hoje que nossa sociedade se apropria de diferentes peças para se expressar. As camisas com frases de cunho político ocupam o lugar de diversas outras peças que, historicamente, têm a função de marcar uma posição político-social. Ou melhor dizendo, gritar ao mundo qual a opinião daquele que abraça tal “manto de luta”.

Quando trazemos essa visão para analisarmos o vestuário feminino ao longo da história, entendemos que, diferente do imaginário social contemporâneo, as mulheres não foram somente vítimas da indumentária de cada época. Muito pelo contrário. Muitas delas se apropriaram de peças para se empoderar e ajudar a conquistar seu lugar na sociedade. 

Foto: The Suffragette, Copyright WSPU, courtesy of National Archives

De acordo com a aula Feminismo & Moda – Roupas subversivas & Feminismo, ministrada pela jornalista e pesquisadora de moda Valéria Said, ao longo dos tempos, podemos observar diversas transgressões no vestuário feminino. Segundo a professora, são nesses momentos que “desconstrói-se a ideia de que a moda apenas serviu para reforçar papéis de subserviência das mulheres”. Para entendermos melhor essa movimentação, é importante contextualizarmos alguns conceitos. 

A caminhada de mãos dadas da Moda e da Política de Gênero

Para entendermos um pouco melhor esse fenômeno, vamos perpassar por alguns conceitos que têm suma importância na relação entre moda, gênero e política.  De acordo com grandes pesquisadores como Gabriel Tarde, a moda pode ser considerada universal, ou seja, se encontra em todas as civilizações e atinge todas as instituições sociais. 

Ao mesmo tempo, a moda é também um fenômeno particular. Isso porque ela se desenvolveu a partir do momento que houve a individualização das sociedades no século XIV, tendo seu ápice durante o século XIX. A partir daquele momento, as roupas não eram mais padronizadas. De certa forma, era possível distinguir classe social, religião e cultura através das vestimentas das pessoas.

Hoje, a Geração Z vem quebrando – mesmo que de forma ainda discreta – as barreiras do binarismo de gênero. A liberdade passou a ser palavra mor no grito de guerra. Mas isso mostra que a pauta de respeito pelo próximo é extremamente jovem. O binarismo de gênero impera na sociedade ociendental que tem padrões marcadamente eurocêntricos e que refletem nas roupas.  Até o século XII não havia muita diferenciação entre as roupas dos homens e mulheres. Foi a partir desse período que a identificação de gênero passou a ser dada pelas vestimentas.

A bifurcação do traje masculino – ou melhor dizendo, a criação das calças – reforçou ainda mais essa divisão que propiciou a “construção social do que é ser homem e do que é ser mulher”, afirma Said em sua aula. Portanto, dali em diante, houve a construção histórica no imaginário social da separação do que é “ser homem” e do que é “ser mulher”.  A professora ainda completa que, em nossa sociedade, “criança já cresce com o senso de que o vetuário deve refletir o sexo biológico, o que reforça, inclusive, seu papel quase que predestinado e, de certa forma, imposto, na sociedade”. 

A subversão de Maria Antonieta que acabou em guilhotina

A Rainha Maria Antonieta, definitivamente, não correspondeu ao que a sociedade esperava de alguém com seu título. Por mais que seja prepotência dizer que suas roupas e atitudes a tenham levado à morte, ao mesmo tempo,  é impossível não estabelecer relação entre suas atitudes e seu destino.  No século XVIII, a esposa de Luiz XVI escandalizou a corte ao usar roupas do guarda-roupa masculino e catalisar um movimento radical no vestuário feminino em seu Palacete Petit Trianon. A rainha posou para retratados com roupas julgadas impróprias para época e suas atitudes incomodavam a sociedade francesa. 

Por mais que a ostentação exacerbada fazia parte da sua personalidade, em vários momentos, Maria Antonieta rompia com a emulação social e política de que devia-se transparecer a posição social através das vestimentas.

A Chemise à La Reine: a prova da desonra da rainha 

À época de Maria Antonieta, a chemise era uma espécie de combinação usada por baixo das outras roupas ou vestida como um traje informal. Ou seja, a mulher poderia utilizá-la exclusivamente quando estava descansando em seu espaço íntimo. 

Depois que a rainha começou a usar a peça sem estar coberta esta ficou conhecida como Chemise à La Reine, dando um sentido desonroso para Maria Antonieta, por se tratar de uma moda que contrariava a indumentária oficial da realeza francesa. 

Inclusive, no mesmo período foi pintado um quadro em que a rainha utilizava essa peça. O retrato precisou ser substituído por um outro oficial e que fosse mais aceitável pela sociedade do período. Afinal, uma rainha que se utilizava da moda politicamente para desconstruir e afrontar a corte por meio do vestuário, não era bem vista.  Quando Maria Antonieta utilizava a chemise, as revolucionárias questionavam muito suas atitudes. Mas, posteriormente, elas passaram a utilizar a peça dando uma nova conotação: Chemise à La Constitution. E, a partir daí, a história começou a mudar.

A Revolução Francesa, o vestuário feminino e o traje de luta

A partir da Revolução Francesa, a adoção de roupas como forma de subversão passou a ser tratada como um elemento importante. Por mais que a revolução tenha aberto muitos caminhos para os homens, para as mulheres a situação não foi assim. A criação das Leis Suntuárias (XIII até XVIII)  permitiram, de certa forma, a democratização do vestuário. Entretanto, sob a perspectiva do discurso de igualdade de gênero, em nada contribuiu para a liberdade do vestuário das mulheres. 

Os revolucionários rechaçaram o uso de peças masculinas e disseram que as mulheres contribuíram melhor com a causa ficando em casa e fornecendo filhos ao exército. Sendo assim, até mesmo em movimentos que queriam romper com a ordem vigente, havia a reafirmação social dos papéis binários de gênero, reforçando que a mulher deveria ficar no privado, cuidando da casa e da família e que seu vestuário deveria refletir isso. 

A “Grande Renúncia Masculina” e imposição feminina

No século XIX, os homens passaram a abandonar as cores, os tecidos brilhantes e as ornamentações do vestuário masculino. O termo “Grande Renúncia Masculina” foi criado por Flügel, a partir do momento em que os homens passaram a não buscar a beleza na forma de se vestir, mas sim trazer em sua aparência o útil e a respeitabilidade por meio de cores sóbrias. 

Le Triomphe du Noir (“o triunfo do preto”) fez com que as as cores mais claras fossem deixadas para as mulheres. Nesse momento, surge o pensamento de que a moda deve estar mais ligada ao setor feminino e, assim, ganha o sentido de futilidade e frivolidade. Por consequência, as mulheres se tornam “vitrine” da riqueza de seus maridos e por isso sempre deveriam estar vestidas de forma aceitável, “respeitosa” e, inclusive, ostentadora.

Já que as mulheres deveriam ficar em casa, elas não precisavam de roupas que dessem tanto movimento. As saias com inúmeras camadas de tecido e os espartilhos que mal deixavam as mulheres respirarem eram obrigatórios e contribuíram para a “manutenção do papel de subserviência da mulher”, como dito por Valéria Said em sua aula. 

O termo “feminismo” surgiu com uma conotação negativa, mas, aos poucos, as sufragistas o ressignificaram. Junto, trouxeram uma indignação pela imposição das vestimentas que, acima de tudo, eram desconfortáveis e limitantes. 

Aos poucos, peças como a Calça Bloomer foram sendo adotadas por mulheres que, corajosamente, enfrentaram aquilo que, teoricamente, servia como via de regra. A calça foi criada por Elizabeth Miller e usada primeiro por Amelia Bloomer, e passou a ser adotada pelas reformistas feministas em 1851. 

Uso de peças do guarda-roupas masculino trazia consigo um valor simbólico. A utilização dessas roupas no vestuário de mulheres emancipadas pode ser explicada pela transferência de capital simbólico associado à intelectualidade, à racionalidade e a um “ofício sério”. 

As  mulheres não somente passaram a utilizar essas peças, mas começaram a procurar empregos fora de casa, clamar por seus direitos e lutar pelo o que acreditavam. Como dito por Said, “é isso que, inclusive, incomodava os homens, porque dava a entender que além delas quererem ocupar o espaço profissional, elas estavam também se apropriando de uma indumentária que, simbolicamente, era só deles. Uma ousadia de troca de papéis”

Roupas Subversivas e as Sufragistas do século XX

Diversas foram as mulheres que ao longo da história deixaram suas marcas na forma com que vestiam. Fosse usando calças, cabelos soltos e curtos, deixando os espartilhos de lado ou se libertando dos sutiãs. Até hoje, é preciso luta, coragem e um pouco de subversão para que as mulheres provem que podem usar a roupa que quiserem e que, serem julgadas ou desrespeitadas por isso, não é uma opção.

As Sufragistas, por exemplo, passaram a utilizar paletós e gravatas no seu dia a dia. Por esse tipo de atitude, acabaram sendo marginalizadas e poucos são os registros das mulheres dessa época. A imprensa do período as acusava de serem “desleixadas” por não seguirem as regras de indumentária da época.  

A Primeira Onda do Feminismo, que teve início no final do século XIX e durou até 1960, deu continuidade ao movimento de luta pela igualdade de gênero e contribuiu para a continuação da subversão das convenções sociais. As mulheres daquela época passaram a pensar a moda de forma mais estratégica. Em outras palavras, usar as vestimentas a seu favor e a favor do movimento.  A moda se tornou cada vez mais uma ferramenta política e isso foi ganhando cada vez mais força. As mulheres da Segunda Onda Feminista (déc. de 1960 e 1970) aplicaram o golpe de estilo confrontando a estética vitoriana do período trazendo então o “New Look Feminista”.

Foi nesse período que o movimento adotou as cores verde (green), branca (white) e violeta (violet) para endossar o slogan “Give Women Votes”. Essas cores passaram a ser incorporadas em acessórios, como broches e joias, que ajudavam com que as militantes se identificassem nas ruas e locais públicos – nascendo o sentimento de sororidade, em que o feminismo defende a importância das mulheres ajudarem umas às outras. A adoção de peças masculinas não ficou esquecida. Chapéus, calças, paletós e demais roupas foram sendo cada vez mais incorporadas. Estas peças continuavam servindo como arma de luta, ajudando as mulheres a reafirmar seu papel e conquistarem seus direitos. 

As Grandes Guerras Mundiais e a Feminilidade

A vinda das duas grandes Guerras Mundiais marcou uma nova fasee foi determinante no movimento feminista. As mulheres precisaram assumir os papéis dos homens nas fábricas que, por sua vez, foram aos campos lutar. 

Era impossível realizar seus novos compromissos sociais usando saias longas e peças que limitavam os movimentos. Além disso, em períodos de guerras, os recursos eram escassos e faltavam até mesmo alguns alimentos. Sendo assim, repor estoques de roupas nas lojas, definitivamente, não era uma prioridade. Portanto, foi a partir desse momento que popularizou-se a adoção das peças masculinas entre as mulheres.  Ao final dos combates e com o retorno dos homens às suas casas, estes tentavam retomar seu papel social e recolocar a mulher dentro das quatro paredes residenciais. Mas, isso foi sendo cada vez menos aceito. 

Aos poucos, as mulheres foram conquistando o direito ao estudo, à escolha do trabalho e a sua liberdade física e intelectual. Ainda há muito o que caminhar no que tange a liberdade feminina. Entretanto, ao longo da história, podemos ver que mulheres que, por muitos foram consideradas subversivas e desmoralizadas, na verdade, serviram de exemplo de resistência e luta. Usaram a moda a seu favor como forma de expressão e ressignificam diversas peças.

Roupas Subversivas na Contemporaneidade

O Feminismo contribuiu para as mulheres assumirem o controle de suas identidades visuais, desafiando politicamente sua representação social, ao romperem com padrões de estereótipos femininos. Mas, a luta pela equidade de gênero continua. Afinal, não é porque as mulheres podem votar, que a batalha está vencida. 

Como dito por Said em sua aula, “se vestir é um ato político”. Hoje, a subversão das roupas faz jus à afirmação do não-binarismo, à completa liberdade de escolha independente da orientação sexual e da identidade de gênero do indivíduo. Até porque, como já dizia Simone de Beauvoir, valores e comportamentos sociais não são biologicamente determinados, mas socialmente construídos.   A moda serve para dar visibilidade à pluralidade de cada indivíduo da sociedade. Diferente da padronização que por muitos anos a indústria impôs, usar peças que dão liberdade de expressão, concedem autoconfiança e rompem com padrões de beleza estabelecidos pela mídia e indústria mainstream é um ato revolucionário que persiste e se fortifica com o passar dos anos.



ESCRITO POR Júlia Vilaça
Apaixonada por moda e política, a jornalista acredita que o futuro do setor deve ser construído através da colaboração, informação, sustentabilidade e pluralidade. É repórter freelancer e produtora de conteúdo de moda para redes sociais.

Apaixonada por moda e política, a jornalista acredita que o futuro do setor deve ser construído através da colaboração, informação, sustentabilidade e pluralidade. É repórter freelancer e produtora de conteúdo de moda para redes sociais.

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