O filme publicitário que posiciona a coleção Dior Outono-inverno – AW21-22, intitulado pela diretora criativa da marca Maria Grazi Chiuri de “Disturbing Beauty” ou beleza perturbadora, publicado nas redes sociais no dia 08 de março, está baseado nos contos de fadas, ainda que em versão noir e um tanto gótica, mas é muito mais do que isso. A genialidade da ideia se encontrou com a genialidade da produção de artistas excepcionais ambientada no esplendoroso Château de Versailles, com tudo que ele significa como signo de beleza, glamour e nobreza, mas também do poder absoluto, do patriarcado e da opulência.
O filme começa com os raios de sol penetrando uma floresta rarefeita e sombria, um escuro amanhecer, com cena cortada pela marcação de um relógio que, com novo corte, retorna à floresta já com corpos dançantes, sugestivamente desnudos, cobertos apenas por uma segunda pele assemelhada aos tons de pele de cada bailarino, pasteurziarando a sexualidade, homens e mulheres igualados pelo mimetismo do corpo. Em dança delicada, os corpos juntam-se e se direcionam a escadaria que tem ao fundo a silhueta do castelo. O sol vai nascendo. Do jardim de Versailles em sua perfeição identitária, os corpos amalgamados seguem para o interior. Oito corpos em movimentos de recolhimento e expansão, adentram os espaços e se direcionam a uma escadaria, uma dentre as 67 possíveis. O corte para a cena da floresta, já menos sombria, mostra um corpo feminino deitado e novo corte para dentro do château coloca em evidência outro corpo feminino vestido, coberto de rosas encarnadas espedaçadas, estabelecendo o diálogo natura-cultura. Os raios de sol, bem como a iluminação que penetra a janela juntamente com as velas fazem despertar ambos os corpos que, apesar dos esforços, se levantam e dançam, mas por pouco tempo, são tomados por uma penetrante dor no peito, se esvaem e novamente se deitam, se aquietam. Uma referência a bela adormecida está aqui dada ainda que o acordar seja rápido, sofrido e efêmero.
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Dentro do château uma jovem modelo em tom noir observa a mulher que antes tentava levantar-se e sobreviver, nitidamente uma mulher mais velha, que agora está diante de uma superfície com espinhos; curiosa a jovem avança no espaço e nota que a imagem daquela mulher é sofrida, assustada e um tanto enlouquecida; a jovem não se detém e entra no espaço que se revela: Galerie des Glaces e segue seu trajeto-desfile de modo a evidenciar a beleza sofisticada e o glamour da ambiência de 73 metros de comprimento e mais de 12 metros de altura, com 17 espelhos hiperbólicos que refletem as 17 janelas arcadas que dão vista para os jardins. A partir daí a magia novamente atua por meio da intervenção da artista italiana Silvia Giambrone que cobriu os formosos espelhos tornando-os opacos e mais, com longos espinhos e algumas sugestões de rachaduras/caules tortuosos, fundinho e metaforizando espelhos em rosas.
A ambiguidade da rosa que é signo de beleza, amor e perfeição, mas também de sofrimento pela potencialidade da dor motivada pela penetração dos espinhos, se junta a toda a anfibologia simbólica do espelho. Espelho que é verdade, sinceridade do corpo, da alma e da razão, mas que é pura magia; que revela o presente e se dá a adivinhação. Símbolo da sabedoria e do conhecimento, por isso as costumeiras associações com a verdade; signo do desconhecimento está no espelho coberto de pó, representante daqueles que têm o espírito obscurecido pelo encargo da ignorância. É um símbolo solar porque o sol é o espelho que reflete a inteligência celeste, mas também é lunar porque a lua é o espelho que reflete a luz do sol. Reflete a realidade, mas também a inverte, mostrando seu duplo, deslocado. É signo da harmonia e da serenidade, assim como o espelho partido é símbolo da separação e da maldição, incorrendo em muitos e muitos anos de azar. Temos fascínio pelo espelho. Como nas histórias da nossa colonização, quando portugueses ofertavam espelhos aos nativos envolvendo-os na magia de suas próprias imagens, o que facilitava a pilhagem do ouro e das pedras preciosas. Por isso, o homem utilizou vários materiais como espelho ao longo da história; a superfície do bronze foi usada como espelho, mas também a água como no mito de Narciso. Utilizamos a própria história como espelho, mirando-nos nela para aprendermos com o passado e projetarmos o futuro.
Mas, na narrativa idealizada por Maria Chiuri o espelho-rosa vem carregado dos pesos enfrentados por todas as mulheres há séculos. Os excessos de trabalho, de cobranças, de padrões rígidos de beleza, de expectativas comportamentais. O espelho que pode ser vaidade e reforço da beleza é o dispositivo que fere porque não revela o pacote perverso de adequação a todas as convenções, mas revela o que somos, em nossa incompletude inevitável. Modelos com roupas bem-comportadas que sugerem uniformes colegiais, golas fechadas, altas, mangas que cobrem, lenços e toucas, lenços e capuzes sobrepostos, semblantes compenetrados, desfilam pela galeria dos espelhos-rosas; seus corpos já não refletem nada.
As bailarinas seguem suas performances diante dos espelhos-rosa-espinhos ameaçadores que nada espelham, mas produzem sombras, que são evidências dos males e tristezas causados pela não adequação aos padrões cristalizados. As sombras se juntam ao contexto noir ecoado também nos tules negros que ocultam e revelam os sofrimentos. Os espelhos-rosa além de revelarem as sombras dos corpos, põe em evidência as esquadrias das janelas em frente, formando cruzes e grades, o aprisionamento inevitável. A sonoridade é espetacular e recobre de sentidos tensionados; neste momento a música ritmada e sinistra é invadida pelos sons do relógio, metáfora do tempo que passa, e a partir do som de uma rachadura temos a certeza do tempo que passou, o que para a mulher, piora sua relação com espelho, tornando-o mais espinho do que qualquer possibilidade de deleite, vaidade e fruição. As bailarinas diante do espelho seguem sua performance, como em um diálogo, mas demonstram suas marcas, colã rasgado, mulheres feridas. O desfile agora traz a mulher rosa desabrochada e esvoaçante, mas seu semblante segue circunspecto.
Outra modelo adentra a galeria dos espelhos-rosa com um longo vestido vermelho de tule encarnado, costas à mostra e peito-coração transbordante, mas que, como tantas outras, não vê sua imagem refletida porque, como os fantasmas, não tem existência. O som, agora romântico, traz a ruptura com a tensão, a mulher de vermelho desce apressadamente as escaladas onde se nota esparsos raios solares perdendo potência. Direciona-se à saída e nas janelas vê-se o crepúsculo e a noite chega. Ela sai pelo jardim escurecido em busca de algo, desce as escadarias do jardim e toma a consciência que já não há mais tempo, a lua discreta à direita é a nesga da certeza do tempo passado. E no caminho pelo paralelismo da vegetação alta e sombria, ela desaparece. O marcador do relógio chega ao XII, meia-noite, a sentença da Cinderela e a sonoridade define, acabou o tempo. Dior assina.
(Foto Reprodução | Adrien Dirand)
Idealizado por Maria Grazi Chiuri, realizado pelo cineasta Fabien Baron, com cenografia da artista Silvia Giambrone e coreografia da israelense Sharon Eyal, com corpo de bailarinos fantásticos e equipe exemplar, Disturbing Beauty de Dior é uma obra-prima. Poderia “só” mostrar a coleção, poderia “só” ambientar o desfile em Versailles, poderia “só” usar lindas modelos e bailarinos, poderia “só” ressignificar os contos de fadas, poderia “só” fazer a critica a condição da mulher, mas decidiu fazer tudo isso com perfeição, sensibilidade e arte. Um espetáculo transbordante e cheio de sentidos.