“O perigo, quando se fala em moda, é que moda termina parecendo lei. E para muitas mulheres, é mesmo”. Essa frase poderia ter sido publicada hoje pela distorção do que a moda é para alguns. Em colunas femininas das décadas de 50 e 60, Clarice Lispector já entendia que, além de roupas, moda é o reflexo de um comportamento social. Nessa época, a autora assinava textos de moda e beleza para quem entendia bem desse “perigo”. Sim, Clarice Lispector também foi jornalista de moda.
Clarice já trabalhou na imprensa e foi uma das primeiras mulheres a pisar em uma redação de jornal. O Correio da manhã, O diário da noite, Comício e até a revista Manchete já publicaram seus textos tão humanos quanto tocantes. Assinando sob os pseudônimos de Helen Palmer, Tereza Quadros e como ghost-writer de Ilka Soares, ícone de beleza da década de 60, eram páginas que diziam sobre a condição, os dilemas e a forma de ser mulher.
Clarice Lispector foi uma das primeiras mulheres a pisar em uma redação de jornal no Brasil.
Na prateleira
No auge da produção de conteúdo impresso no Brasil, jornais e revistas enchiam as prateleiras de bancas e eram disputados por leitoras ávidas por novidades. Quando nem se cogitava o que era vida digital, o papel era premium por natureza.
Na efervescência cultural dos anos 60, a força feminina se engajava na conquista pelo direito ao voto, ao divórcio e se posicionava sobre o aborto e o uso do anticoncepcional – motivos para muitos torcerem o nariz. Praias de tantos litorais testemunharam as pernas e o corpo de fora em “biquínis de bolinha amarelinha” na vida feminina regida por um lar com marido e filhos a tiracolo. A mulher entrava em cena e a imprensa feminina manteve os olhos atentos aos gostos e às preferências de suas leitoras.
Essa feminilidade frequentava bailes, festas de formatura, salões de beleza e ateliês de costura para saber tendências, cortes, cremes milagrosos e roupas de uma desejada aura hollywoodiana. As emoções das histórias do rádio e o sonho das capas de revista davam conta do que era ser mulher pela mídia naquele momento.
Letras de batom
O toque dos dedos de Clarice Lispector na máquina de escrever era o sopro criador de páginas em que assinava como Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares. Foram textos sobre conselhos para donas de casa, dicas de moda e beleza, além de receitas culinárias.
Já perdi as contas de quantas vezes assisti à entrevista que Clarice concedeu ao jornalista Júlio Lerner, em 1977, nos estúdios da TV Cultura. “Quando estou escrevendo alguma coisa, eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é?”, divagou a escritora. Costurada pela linguagem, estamos na fronteira entre Literatura e Jornalismo.
Em 1952, Clarice estreia a coluna Entre mulheres no jornal Comício. Entre dicas de moda e estilo, o texto mais íntimo revela a astúcia e o temperamento de Tereza Quadros. Além de conselhos amorosos e dicas sobre a educação dos filhos, a moda estava presente. Um desfile de estilo que descrevia decotes, vestidos e o tamanho das saias fazia do New Look de Christian Dior ser referência de uma silhueta esguia, rígida e construída com esmero por imagens. Eram novidades que o jornalismo feminino incutia em suas leitoras.
Assinando sob os pseudônimos de Helen Palmer, Tereza Quadros e como ghost writer da atriz e cantora Ilka Soares, a escritora manteve colunas femininas com dicas de moda e beleza em jornais e revistas no Brasil da década de 60. Sim, Clarice Lispector também foi jornalista de moda.
Depois de conhecer o mundo devido à carreira diplomática do marido, Clarice se muda para o Rio de Janeiro após sua separação e aumenta a presença em jornais para ajudar no orçamento doméstico. No início dos anos 60, assina a coluna Feira de utilidades no jornal Correio da Manhã como Helen Palmer e passa a publicar contos na lendária revista Senhor com colaboradores do calibre de Guimarães Rosa e Paulo Francis. A era de ouro do jornalismo impresso brasileiro havia chegado.
As manhãs na orla carioca do bairro do Leme faziam desabrochar a consciência feminina de direitos sociais vistos por uma alma pulsante e observadora. Afeita à moda como consumo, as receitas para receber visitas em casa foram substituídas por dicas de beleza – a precursora do skincare -, que preenchia páginas ao lado de moldes para vestidos, bolsas, chapéus e acessórios. Afinal, uma mulher moderna já se preocupava mais consigo mesma do que com o lar e a família. Novos tempos, novas vontades. Helen Palmer acreditava que “as mulheres sempre dão um jeito de por um toque de vermelho em alguma coisa”. Uma mistura de glamour e gramática, como acredita Benjamin Moser, biógrafo e tradutor da autora.
Trazer celebridades para jornais e revistas era uma grande novidade. Alberto Dines, então jornalista iniciante, convidou a escritora para ser ghost-writer da modelo e atriz Ilka Soares. Segundo o jornalista, a presença de Clarice era notada pelo esmero na entrega de textos com pontualidade e prontidão. “Uma lembrança e tanto”, recordou. De abril de 1960 a março do ano seguinte, Ilka Soares revelou sua personalidade em assuntos femininos pelas mãos de Clarice em Nossa Conversa, coluna diagramada em O Diário da noite.
Do texto para o mundo
Não é de hoje que Clarice é uma das escritoras mais conhecidas e citadas internet afora. Os memes que o digam. É dando scrolls e cliques que a autora fixa seu olhar, no rosto e no texto, com uma escrita feminina, intensa e atemporal. Seus textos proporcionam uma leitura transformadora: uma epifania com o peso da palavra. Em tempos tão inconstantes como o que vivemos, o que seria de nós sem escapes e alienações?
Uma perspectiva de moda e pensamento interessantes e que merecia uma capa por aquilo que a revista simboliza hoje: conteúdo bem apurado, premium e edições dignas de colecionador. Internacionalmente conhecida, é nesse meio editorial – de um burburinho remodelado em tempos de tráfego de navegação e engajamento nas redes sociais -, que a revista abraça o futuro que nos bate à porta assim como Clarice já prenunciou no passado. Entre páginas, perfis e editoriais de moda, uma edição especial seria muito bem-vinda (no impresso e no digital) para o leitor hoje.
O que a moda diz sobre estilo, identidade e personalidade, Clarice já nos sugeria pela sensibilidade de sua escrita nos rumos que deu ao fluxo de pensamentos, ao inconsciente puro, observador e delirante. Uma edição que poderia estar nas bancas do mundo todo, com versões digitais e, especialmente, impressa na memória e no coração de leitores por muito tempo.
Em se tratando de redes sociais e sua galáxia de filtros em editores de imagem, não resisti ao projetar possíveis capas de um rosto tão conhecido quanto misterioso da Literatura Brasileira. Mais do que uma edição limitada; é exclusiva e de emoções colecionáveis, como sempre foram os textos de Clarice.